Descriminalização do aborto e o Estado laico

O aborto e sua legalização sempre foi um tema polêmico, sobretudo em países como o Brasil, majoritariamente religioso. O tema voltou com força total à mídia em razão da afirmação a respeito de projetos de legalização do aborto, recentemente feita pelo Presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB/RJ), segundo o qual "vai ter que passar por cima do meu cadáver para votar".

Em razão da amplitude do tema e dos vastos argumentos, das mais variadas facetas, que se apresentam contra, tem-se por bem dividir este artigo em dois capítulos: o Estado laico e a Saúde Pública. Desta forma, desmembrando o tema, é possível garantir profundidade digna do assunto.
Neste capítulo trataremos do tema O Aborto e o Estado laico, buscando desconstruir argumentos religiosos contra a legalização do aborto. Futuramente trataremos da desconstrução dos demais argumentos.


Fonte: olharvirtual.ufrj.br


Descriminalização do aborto e o Estado laico

Um dos maiores argumentos contra a legalização do aborto é o direito à vida. Entretanto, esse direito se divide em duas facetas: o direito à vida constitucional, garantido na nossa Constituição Pátria vigente, e o direito à vida de cunho religioso.

Em momento oportuno, falaremos sobre o direito à vida constitucional e como o aborto não infringiria tal garantia fundamental. Todavia, neste capítulo falaremos sobre o direito à vida de cunho religioso, e demais argumentos relacionados à dogmas religiosos, uma vez que essa questão é um dos maiores empecilhos à descriminalização do aborto.

A Bancada Evangélica, por meio do Estatuto do Nascituro, busca fazer da prática do aborto um crime hediondo em sua totalidade, inclusive abominando as exceções já legalizadas. 


Estatuto do Nascituro é um projeto de lei datado de 2005 que visa garantir proteção integral ao nascituro, tendo sido proposto pelos Deputados Osmânio Pereira e Elimar Máximo Damasceno. O projeto também visa proibir a pesquisa com células tronco embrionárias no país.
Apesar de o projeto original ter sido arquivado em 31 de janeiro de 2007, está tramitando outro projeto de lei semelhante datado também de 2007.
Tais projetos de lei têm sido alvo de muitas discussões e críticas, principalmente por resultar na proibição do aborto, em qualquer situação, pois considera que a vida humana existiria desde a concepção, adotando, pois, a Teoria da Concepção.
Ora, antes de analisar qualquer argumento religioso a respeito do tema, cumpre salientar o que vem a ser o Estado laico.
Primeiramente, Estado laico não é um estado ateu. O Estado brasileiro, inclusive, é um Estado teísta, pois admite a existência de uma ou mais divindades. Todavia, ainda que mencione "a proteção de Deus" no preâmbulo da Constituição Federal, o Estado brasileiro não adota nenhuma religião como sendo a religião oficial. Ou seja, ser um Estado teísta é diferente de ser um Estado laico.
Estado laico, também conhecido como Estado secular, tem como princípio a imparcialidade em assuntos religiosos, não apoiando ou discriminando nenhuma religião. O Estado laico garante a liberdade de culto religioso, ao mesmo tempo que garante a não interferência de nenhum culto religioso em matérias sociopolíticas, econômicas e culturais.
Ou seja, ao mesmo tempo que o Estado laico garante a liberdade religiosa a qualquer cidadão, também garante que nenhuma religião influenciará as decisões tomadas pelo Estado. Se todos os cidadãos possuem liberdade religiosa, isso também significa que não se pode impor uma religião sobre a outra, bem como não se pode impor dogmas de religiões majoritárias sobre as religiões minoritárias dentro de um Estado laico. Exatamente por essa razão é que o Estado, em suas decisões, deve ser completamente neutro no campo religioso.

Isso também significa que as leis de um Estado laico não podem sofrer influência de nenhuma religião. As leis se aplicam a todos os cidadãos, e como se poderia impor uma lei fundamentada em dogmas de uma religião a todos os cidadãos se esse mesmo Estado deve garantir a liberdade religiosa?

O Brasil é oficialmente um Estado laico, pois a Constituição Brasileira e outras legislações preveem a liberdade de crença religiosa aos cidadãos, além de proteção e respeito às manifestações religiosas.

No artigo 5º da Constituição Brasileira (1988) está escrito:
“VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, 
sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, 
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias."

Todavia, é no mínimo curioso que o Brasil possua tanta influência religiosa em suas decisões estatais, sendo, pois, majoritariamente influenciado pelos dogmas cristãos, estes divididos principalmente em duas vertentes: o catolicismo e o protestantismo, este último publicamente conhecido como "banca evangélica", da qual falamos acima.

Ora, uma vez que o Brasil é oficialmente um Estado laico, não se faz plausível que nenhum argumento religioso, seja de qual religião for, tenha qualquer influência sobre uma questão que será imposta a todos os cidadãos.

Por esse ponto de vista, não há que se falar em vontade de Deus, em presente de Deus, ou mesmo em planos de alguma divindade. Qualquer argumento de cunho religioso deve servir, única e exclusivamente, para fundamentar decisões pessoais, a título de convicção íntima, mas sem o poder de imposição a outras pessoas.

Não obstante, cumpre salientar que a religião não influencia em absoluto a decisão sobre a prática do aborto, apesar de abominá-la, de forma geral. De acordo com Pesquisa realizada Agência Ibope Inteligência, e veiculada pela Universidade de Brasília (UnB), 65% das mulheres que abortam seriam católicas e 25% seriam protestantes.


Obviamente, o vultoso número de mulheres religiosas que praticaram aborto se dá em razão da proporção de mulheres religiosas no país. Todavia, os dados servem para demonstrar que, apesar de suas religiões abominarem a prática do aborto, essas mulheres recorrem a uma prática ilícita, correndo o risco de serem responsabilizadas penalmente ou, ainda pior, de perderem suas vidas em abortos clandestinos, além da óbvia reprovação de suas religiões. Ou seja, os dados demonstram que a religião não influencia a decisão sobre a prática do aborto.

Cumpre salientar, ainda, a dificuldade em se estabelecer estatísticas quanto aos números de abortos realizados no país, bem como ao número de mortes em decorrência de abortos clandestinos. Também encontra-se enorme dificuldade em traçar um perfil das mulheres que abortam no Brasil, em razão de que muitos abortos são praticados à surdina, em clínicas clandestinas, ou mesmo no âmbito residencial, de forma que os casos de que se tomam ciência são poucos. Logo, os dados são subestimados. Isto é, o número real de abortos realizados é certamente superior ao demonstrado em estudos, o que é preocupante, e será melhor abordado no capítulo sobre a Saúde Pública.

A ilegalidade do aborto por questões religiosas compromete a laicidade do Estado, bem como os direitos inerentes à democracia. É sabido que os argumentos religiosos não são os únicos argumentos contra a descriminalização do aborto (razão pela qual se há de fazer mais dois capítulas sobre o tema), mas o que não se admite é um Estado que se diz laico se mantenha alienado ao reconhecimento do direito legal à interrupção da gravidez, acuado por grupos religiosos, recusando a analisar e aprovar mudanças na legislação sobre o aborto que atende aos interesses públicos.

Desta forma, resta claro que o Estatuto do Nascituro é uma aberração jurídica, totalmente contrária à democracia e à liberdade que tanto se preza em nossa Constituição Pátria. Observa-se, notoriamente, que o Estado brasileiro tem disseminado referências, valores e dogmas religiosos, sobretudo os dogmas cristãos, o que representa um retrocesso ao Estado Democrático de Direito. Garantir a liberdade de culto religioso exige a neutralidade do Estado com relação aos valores das diferentes religiões. Privilegiar os valores de uma é impor estes aos valores das demais, bem como a quem não possui nenhuma religião.

A religião é um direito de todo cidadão! Praticar sua religião, reunir-se em culto religioso, bem como expressar suas crenças é um direito de todos! Ao mesmo tempo, a religião deve se submeter ao pacto democrático, e justamente em razão da liberdade religiosa é que nenhuma religião deve se misturar ao Poder do Estado, seja ele Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário.

Dessa forma, torna-se totalmente inválido o argumento religioso, seja oriunda de qualquer religião, a respeito da descriminalização do aborto. E não se deve admitir, no Estado laico brasileiro, que qualquer direito ou decisão estatal seja tolhido por grupos religiosos.












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2 comentários

  1. Dra Camila,

    Onde esta a continuação do texto?

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    Respostas
    1. Bom dia! Os dois capítulos de continuação estão sendo escritos ainda e serão publicados em breve. Att.

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